"A morte do artista
Entrou no palco com um sorriso na boca e o cabelo a voar, deslizou até ao centro e tomou o lugar que lhe competia. Rodeado pelos outros, sentia-se bem, sentia-se o centro do mundo, que era como se sentia sempre antes de entrar em acção. Aquilo era a sua vida, o seu sonho, tudo o que sempre desejara desde que se lembrava de ter tino, corpo, mãos, pernas, pés, ossos, músculos.
Uma máquina em sintonia perfeita, da qual ele tratava como se fosse um cavalo de corrida, dos que valem milhões de dólares. Ele também valia, ou melhor, valeria, se tudo corresse bem, se fosse tão bom que fosse o melhor, o mais bem pago. A ideia abria-lhe na boca um sorriso maior, como se estar ali naquele lugar àquela hora fosse uma espécie de destino cumprido, com a brisa morna da noite a varrer-lhe os cabelos e a confiança de oiro a reluzir.
A entrada no palco era o momento, o ronco atento do público, a respiração parada da multidão antes do ataque, a agressão controlada ao adversário, a deixa certa, a ocupação do tempo e do espaço como processos absolutos, obedecendo a leis tão destruidoras e tão caprichosas como a lei da natureza. Aquilo começou, era a hora. A multidão levantou-se e deu a ordem da batalha.
O suor caía-lhe pela pele, um visco quente que o aquecia mais, cada vez mais, como se estivesse a arder, como se fosse um gladiador dentro do circo. As mãos tinham deixado de existir excepto para agarrar, tactear, impedir o outro, impedir o intruso entre ele e a sua hora, o seu milésimo de segundo, aquele milésimo de segundo que decide quem ganha e quem perde.
Naquele palco ou se perde ou se ganha, não há segundos nem terceiros, não há medalhas de prata nem bronze. A multidão estava de pé, exaltada, esgotada, molhada ela também de suor e delírio, e no palco ele corria como um animal na selva buscando a presa, perseguindo-a até levá-la a fazer o que não queria, entrar na ratoeira.
Cada vez que a presa caía na ratoeira, a multidão levantava-se e roncava a vitória de um dos grupos, e tinha de ser o dele, era para isso que vivia, para vencer.
De repente, sentiu o coração a explodir, o corpo a vaguear, a fugir-lhe como se não lhe pertencesse. Sorriu uma derradeira vez e caiu no chão como uma árvore derrubada, um árvore que ainda não parara de crescer.
A multidão estava sobre ele, abraçava-o, chorava-o, dava-lhe socos no peito parado, gritava com ele para ele viver. Ele já não os ouvia, os seus fãs, o seu público. A sua vida. O coração despedaçado recusou continuar, fez-se um grande silêncio de choro suspenso, e o jogo de futebol acabou ali.
No instante de glória em que o gladiador tombara na arena antes do tempo. A bola, presa abandonada, rolou para o canto e deixou-se ficar imóvel, uma coisa chorando a morte do homem que lhe dera tantos pontapés. Tantos pontapés.
Morreu como os toureiros, disseram depois. Morte de artista."
Clara Ferreira Alves in Record
terça-feira, janeiro 27, 2004
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário